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Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros
Naquele ano já estava em construção, do outro lado da praça, “A escavação que estamos procedendo, de um metro de profun-
um novo templo, o que talvez possa ter acobertado interesses prévios didade, na área em pesquisa, tem quatro metros de extensão até alcan-
na alienação do terreno da igreja, acabada por volta de 1817 e situada çar os cinco degraus da escada que dava acesso ao balcão do altar-mor.
do lado oposto da mesma praça central de Coração de Jesus, ao dito Neste espaço já descoberto nenhum fragmento de osso humano ou de
estabelecimento bancário. urna funerária foi encontrado, ao contrário do verificado em todo o
Indubitavelmente foi mesmo um ato de vandalismo, com in- terreno ocupado pela igreja, cujos esqueletos se contavam às centenas.
sensibilidade preservacionista dos agressores, aviltando a memória “O terreno em observação assim virgem de sepultamentos des-
histórica e cultural de todo um povo. pertava a credibilidade de ter sido reservado para inumação de uma fi-
Curiosamente, por aquela época, o Padre Colatino criava em gura benemérita, quando morresse. Era usual naqueles tempos. Uma
veado no quintal de sua casa. Enquanto aquele patrimônio histórico forma antecipada de gratidão. Gente pura!... Acreditava na eternidade
da humanidade era demolido, o cervídeo deu uma chifrada em seu física das suas casas de oração.
criador. O ferimento causado nunca sarou, levando o religioso a óbito “Exatamente no ponto de saída da escada que dava ao altar-
pouco tempo depois. A seu turno, a Caixa Econômica do Estado de mor, na profundidade de um metro e dez centímetros, foram encon-
Minas Gerais (MinasCaixa) foi extinta, com o Estado sendo obrigado tradas peças de madeira de cedro, de que era construída a urna, nas
a pagar a seu poupadores a diferença de correção relativa à inflação quais notava-se visivelmente o decalque secular de galões dourados,
aplicada a menor nas contas que tinham saldo em julho de 1987.
já esverdeados pelo tempo. Em perfeito estado de conservação encon-
As poucas pessoas preservacionistas da cidade, lideradas pelo tram-se retalhos do sudário de São Francisco, com suas bimbinelas
naturalista José Alves de Macedo e contando mais com Samuel Bar- de seda e o tradicional cordão da piedosa liturgia da Congregação
reto, Antônio Augusto de Matos, Alberto Eduardo Araújo Barreto, Sanfranciscana.
Arnaud Samuel Araújo Barreto e Herculino Lafetá Rabelo, conscien-
tizadas da importância de um patrimônio histórico que se perdia, ain- “O registo de óbito de Francisco Ferreira Leal disse a verdade:
da esboçaram uma reação contra a demolição, mas de nada valeram estava localizada a sepultura do maior dos beneméritos da cidade de
seus esforços. O muito que conseguiram foi recuperar, com grande Coração de Jesus.”
esforço, os restos mortais de Francisco Ferreira Leal (1734-1811), o A destruição desse bem material equivale a dano ao patri-
fundador do Arraial do Santíssimo Coração de Jesus, sepultado na mônio cultural de toda a humanidade, o que, hoje, é objeto, cada
igreja que desaparecia, constando na ata, lavrada em 18 de novembro vez mais, de recriminação internacional. Todos nós integramos uma
de 1972, o pormenor: sociedade que produz cultura. E esta deve ser sempre preservada, a
“(...). Era costume na época a utilização das capelas e das igrejas qualquer custo, para o resgate da nossa própria identidade como seres
para cemitério cristão. Neles eram sepultadas as pessoas batizadas e humanos.
que tiveram vida ilibada, isto é 1832, quando, para criação de uma Houve em Coração de Jesus, da parte dos que trabalham, pes-
paróquia era exigida a construção de cemitério e proibidas as inuma- quisam e estudam, um pesar imensurável pela perda irreparável do
ções nos templos religiosos. rico patrimônio histórico e cultural, não só do Brasil como também
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