A narrativa do mundo total chamamos epopéia e damos
um tom elevado. Á narrativa do mundo particular num
tom particular e feita a um leitor particular, chama-se romance.
É o que diz Wolfgang Kayser que ainda explica estar
a forma romanceada desde sempre buscando descrever áreas
mais precisas num mundo de ficção, de alguma
forma mais próximo do norrador e em área contida
mais pela experiência do que pelo sonho, experiência
de leituras, do meio social ou profissional, por viagens,
pelo resumo configurativo de personagens formadas em nosso
campo de interesse. Uma coisa é certa: o romance busca
fertilmente o papel do acaso. Ele nos surpeende na tentativa
de poetizar o mundo, miscigenando realidade e verossimilança
com o máximo de fantasia, livre, solto, o autor nao
fica na obrigação de passar certificados de
garantia. O mundo é seu, e desde que coerente, faz
dele tudo segundo sua vontade. O que não pode é
fugir ao dever da onisciência, há sempre de saber
tudo!
Fora
do gênero e do sentido da balada, da novela, do idílio,
o romance é antes de tudo uma narrativa de evento,
personagem e espaço. Se um desses elementos se torna
portador de maior ênfase, ressalta daí um gênero.
Assim, o romance de ação, o romance de personagem
e o romance de espaço. “O historiador da literatura”
– afirma Kayser – “poderá confirmar
esta divisão tirada da essência das coisas”.
O mais fácil de entender é o romance de ação
ou de acontecimento. Como o acontecimento arranja princípio,
meio e fim, toda a realização deste gênero
apresenta arredondamento que não é fácil
de ser alcançado pelos outros gêneros. É
quando o autor, poetizando o mundo, aparecendo-se ou não
com o próprio eu, vê-se como portador de acontecimentos
e sensações, confidente de ódios e amores,
de ambições e desprendimentos, de covardias
e heroísmos, e criador de todos os tipos próprios
do dinamismo da vida: o criminoso, o ladrão, o santo,
o aventureiro, o mistério, o amado, o amante e o desamado.
Tudo fruto de uma inteireza plasmada pelo tempo e pelo espaço.
Foi
com o objetivo consciente de plasmar a universalidade do romance
num pedaço geográfico que fica muito longe de
nossa coletiva e sertaneja experiência, que Coby Aquino
escreveu este segundo livro rural/urbano, contido numa paisagem
que, embora misteriosa, é bem conhecida. “Aconteceu...”
mais do que narrativa de mistérios e buscas policiais,
é uma perfeita descrição do nosso tipo
humano convencional, ao mesmo tempo arcaico e modernizado,
vinculado às práticas da vida na roça
e na pequena cidade meio industrializada, sempre envolto voluntária
e involuntariamente num misticismo de laços religiosos
e familiares, uma espécie de grande casa-grande norte-mineira,
com nobreza e vassalagem. O tradicional sofre as mudanças
naturais do progresso, sempre a trazer mais problemas que
soluções muito embora ainda não consiga
desfazer imbrigados traços de convivência rural.
“Aconteceu...”
traz no bojo os perfumes da vida na roça, o cheiro
da sala de jantar e da cozinha de casa de fazenda, bons beijus
quentinhos, bolinhos fritos, biscoitos escaldados, leite fresco,
café torrado em fogão-de-lenha e moído
em pilão de jatobá, mel de abelha, feito por
abelha, tigelas de farofa, galinhas e leitões assados
servidos em travessas grandes. Tem também a escuridão
das noites sem luz elétrica e sem luae a umidade das
veredas e das beiras de córregos e pântanos,
marcas de virgindade que já se transforma em saudade.
É a fixação de costumes coloridos de
vida, de vozes e atitudes, de humanas qualidades e defeitos
que os poucos anos do futuro cuidarão de transformar
em passado extinto.
Corby
Aquino consegue em “Aconteceu...” criar, descrever
e movimentar interessante galeria de personagens, percorrendo
um mosaico vivido, compósito, excêntrico, um
corte longitudinal numa sociedade que oferece cores um tanto
já perdidas na vida real. A empregada doméstica
ainda tem prestígio de dona de casa e é colocada
como convergência de todas as preocupações
e todos os zelos, fonte e destino de sentimentos que ainda
sobrevivem para enobrecer o nosso coração. Padre,
sanfoneiro, capataz, lavadeiras, moças e rapazes, velhos
e meninos, o sacristão e o vaqueiro, o jagunço
e a rapariga, todos se juntam para construir um ambiente rural
em contraste com o outro urbano de médico, delegado,
detetives, gerentes e peritos, de modo a tirar-lhe os mistérios
e o preguiçoso conforto.
Seu
Zezito e Maria de Jesus são figuras que permanecerão
por muito tempo na memória do leitor. Joãozinho
Lagartixa, Manelão e Manezim, José de Jesus,
Lena, Zeno, Dália e Mariquinha, Padre Toledo, Vilars
e Rosita, assim como Joaninha, todos são personagens
bem tecidas e bem pintadas com linhas e tintas da mesma resistência
com que o sertão marcou o intelecto eo sentimento do
autor.
O
livro é bom, é doce e gostoso. Tem cheiro inesquecível
de nossas velhas fazendas, do nosso mato, do pequi amarelinho,
da goiaba madura, do cajazeiro e do umbuzeiro do sertão.
Há nele um forte sentimento de humanismo e de solidariedade,
gente com jeito de gente.
Vale
e ainda vale muito, leitor, experimentar o sabor deste novo
Corby!
(Prefácio
do livro “Aconteceu...”, de Corbiniano Aquino)
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