Os revoltosos iriam chegar a qualquer hora e, para passar
por Salinas, a fazenda do meu avô João Morais
tinha que ser caminho obrigatório. Como esperá-los
seria loucura ou, no mínimo, ato bem arriscado, todo
o pessoal da fazenda tratou depressa de tirar o time de campo
e descobrir o lugar mais isolado e seguro que fosse possível
encontrar. Aliás, isso nao seria problema, pois, quem
mais conhece mesmo a sua fazenda é o fazendeiro. Meu
avô deu ordens expressas para que levassem de tudo,
o necessário para uma agradável aventura de
pelo menos trinta dias: material de cozinha, roupas de dormir
e de vestir, vacas de leite, garrotinhos de carne macia, porcos,
cabritos, frangos e galinhas, capões, todas as abóboras
e maxixes e raízes de mandioca mansa que pudessem tirar
sal, tempero, rapadura, açúcar de pedra, e mais
todos os etcéteras – etcéteras. Também
o mais importante para os trinta dias de festas: pandeiros,
violões, sanfonas e um ou outro garrafão da
melhor pinga do alambique, não muita, porque minha
família nunca foi de beber lá esse tanto.
Quando
penso nessa proeza, não posso fugir à lembrança
de saída dos judeus para a Terra Prometida, com Moisés
e Josué dirigindo o povo com todos os animais e todos
os terecos de valor. Para governar o rebanho, foi nomeado
o filho mais velho, o mais ajuizado, o defensor intransigente
do patrimônio, já quase em ponto de se casar,
o Armindo Morais. Todos contam, ainda hoje, da pequena viagem,
como uma grande saga, um ato de alegre heroísmo, um
descontraído sacrifício de velhos e jovens,
de patrões e agregados, Mamãe conta que, mesmo
nas paradas para o descanso das mulas de carga, o sanfoneiro
tinha de tocar e a dança era obrigatória. Para
qualquer fomezinha, morria logo uma leitoa, o arroz com carne,
cozinhava fumegando de gostoso. Todos gozavam a vida e só
o Armindo dava o toque de responsabilidade no verdadeiro serviço,
só ele comandava para assunto sério.
Conto
esta estória para dizer que talvez tenha sido nesse
imprevisto contra-revolucionário de 1926 o grande início
de vida do meu Tio Armindo, um homem de sessenta anos de trabalhos,
do dia que se entendeu por gente até a hora final por
acidente numa fazenda do Pará. Todo o tempo de sua
existência foi tempo sem férias ou feriados e,
como não podia deixar de ser, a última viagem
era também de serviço. O melhor descanso –
dizia – era um bom exercício, uma atividade para
ocupar a cabeça, dar tratos ao juízo. Quando
sentiu terminar sua tarefa de fazer as fazendas de Salinas,
Cachoeira de Pajéu e numa espécie de sesmaria
que comprou de Filomeno Ribeiro pelas bandas do Rio Ribeiro
pelas bandas do Rio Caitetu, pulos de fronteiras e iniciou
um novo império nas matas da Amazônia. Não
era homem de pequenos lotes de terra, era um bandeirante e
um colonizador.
Foi
conversando com Tio Armindo, aconselhado-o e dele recebendo
conselho, interrogando-o sempre sobre a importância
de terra e da vida, sobre a pragmática do trabalho
e a vantagem de saber pensar, é que criei dentro de
mim um grande respeito pelo fazendeiro, pelo homem do campo,
a única nação de gente que sabe unir
o suor à meditação, sabe remoer calado
as fatias de beleza de todas as horas do dia.
|