O
dividido Fernando Pessoa
Wanderlino
Arruda
Se
é difícil falar de uma pessoa, penetrar no seu
íntimo, senti-la e transmitir seus sentimentos, imagine
quando essa personalidade é dividida e subdividida,
como aconteceu com o poeta português Fernando Pessoa,
que tinha, no mínimo, cinco heterônimos, cada
qual com sua biografia, seu mundo, seu estilo. Ele mesmo,
Fernando, uma caudal de vibrações humanas e
poéticas, uma sensibilidade tão à flora
da pele e das idéias, que muitos chegaram a dizer nas
raias da exuberância sobrenatural. Foi quem marcou a
mais forte presença na poesia portuguesa e européia
nestes últimos anos do milênio, ou melhor, em
nosso século, já que ele começou mesmo
a escrever e a publicar em português a partir de 1912,
numa espécie de reencontro com suas origens lusitanas.
Pessoa influenciou muito dos seus contemporâneos e continua
até hoje arrastando uma falange de adeptos cada vez
maior.
Para o crítico Oscar Lopes, Fernando Pessoa “é
a mais importante personalidade das tendências pós-simbolista
portuguesa”. Para João Gaspar Simões,
“Pessoa tornou-se o mais imitado dos nossos poetas modernos,
porque exprimira penetrantemente certas contradições
inerentes à sua camada numa altura em que elas estavam
latentes”, “quando ainda se fingia acreditar em
certas sinceridades ou sentimentos poeticamente expressos,
em certos ideais ou emoções teoricamente caritativas
ou cívicas que, no fundo, se havia esvaziado de qualquer
conteúdo concreto, quotidiano ou intimamente pessoal”.
Na sua poesia, tudo isso se ironiza e problematiza com uma
justeza inexcedível de tom lírico, porque Pessoa
opõe-se à metafísica sentimentalista
romântica, que abstrai a sensibilidade da razão
“o que em mim sente está pensando”. “É
preciso fingir para conhecer-se”.
Pessoa fez uma distribuição de sua obra por
vários heterônimos e tem dado por isso ensejo
a numerosas discussões sobre sua unidade ou pluralidade,
ou sinceridade, já que foi um ser altamente contraditório.
Na verdade, cada poeta de sua divisão criadora corresponde
a um conjunto de posições polêmicas determinadas.
Cada um com vida própria, cultura peculiar, sentimentos
e problemas individuais, opondo-se ou identificando-se como
seres humanos portugueses ou universais. Como não é
possível dizer tudo em um só fôlego e
espaço de jornal, eis algumas pinceladas sobre os principais
e mais conhecidos:
ALBERTO CAEIRO – reage em verso prosaicamente livre
contra o transcendentalismo saudosista, mostrando que o “único
sentido oculto das coisas / É elas não terem
sentido oculto nenhum”; é contra o farisaísmo,
então concorrentemente jacobino e devoto da poesia
compassiva e sentimental. Caeiro apareceu em Fernando Pessoa
com trinta e tantos poemas que ele escreveu de pé,
numa espécie de êxtase, cuja natureza o próprio
Pessoa afirmou não saber definir se mediunidade ou
simples inspiração. Saiu daí “O
Guardador de Rebanhos”.
RICARDO REIS – exprime contra as concepções
meramente abstratas de sobrevivência “port-mortem”
ou de progresso humano e em estilo que se pode designar com
neo-arcádico, embora apresentando uma densidade de
significado muito mais próxima do modelo horaciano;
a antiga sabedoria epicurista egocêntrica de dores e
prazeres prováveis. Ricardo Reis é desde o princípio
um alto poeta formal, de alto refinamento artístico.
Sentia-se apto a trabalhar a forma métrica ao verso
à maneira dos que perpetuam na poesia como lavrantes
amorosos, requintados e astutos das formas e do virtuosismo
estético. Ricardo Reis proporcionou a Pessoa a primeira
sensação de plena harmonia consigo mesmo e com
a literatura.
ÁLVARO DE CAMPOS – prega nas odes em verso livre
entusiástico, a sabedoria futurista da sem-razão,
da energia bruta, da vida jogada por aposta. Álvaro
de Campos era uma mentalidade trabalhada pela civilização
e pelo progresso. Engenheiro, ultrapassa de longe nas ambições
até o próprio Pessoa. É em verdade o
mais simulado dos heterônimos e entre todos, o mais
mistificadoramente concebido. Pretendeu formar uma nova escola
e o conseguiu.
Desculpe-me você se o assunto foi por demais erudito,
tratando-se de apresentação crítica literária.
Um dia, quem sabe, voltarei falando mais do homem do que do
artista.
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