Silvana
Guimarães
Consentimento
Era
primavera, eu ouvia estrelas,
jasmins e manacás,
era madrugada com tempo de luz
do dia,
era um violino enfeitiçado
atiçando-me com cordas,
era a vida batendo na mesma tecla,
era os delírios ocultos
na palma da mão,
era o fogo queimando todos os
meus lábios,
era praga de anjo, era nós
desmoronando,
era senso perdido, o que tinha
de ser.
Era quase noite quando eu sucumbi
no seu corpo.
Por conta de uma flauta doce,
achei o caminho.
Motivo porque nunca mais voltei.
Caixa de ferramentas
Dúzias
de pregos soltos,
três alfinetes de fralda
pra servir de desmazelo.
Um rolo de fita isolante,
que nem teve serventia.
Seis retratos 3x4, fora
o do relicário de prata,
que não é meu, com
mentira
escrita no verso. Em prosa.
Desarrumadas lembranças,
uma carta de amor,
três de baralho:
um rei de pau,
uma dama de quatro,
um ás de ouro puro,
erro de cartomante.
Uma chave de fenda,
uma calcinha de renda,
uma clave de lua,
pena de passarinho,
asa de borboleta,
raiozinho de sol.
Minhas caixinhas de música,
conchinhas, tantos mares,
minha coleção de
pedras,
meu colar de pérolas
e aquele salto alto,
que nunca foi lá.
Três segredos, sete chaves
e nenhuma abre a algema.
Uma faca desafiada
por um pulso sem coragem,
uma tesoura sem ponta,
aterrorizando velhos papéis.
Um missal de madrepérola,
um santinho de São Jorge
assassinando o dragão
com um canivete suíço.
Três segredos tão
sufocados
no amarrado da fita amarela.
Um soluço, a última
ilusão.
Todas as bugigangas que juntei,
todos os parafusos que perdi
e quase esquecido, de lado,
escondido entre rimas quebradas,
um martelo torto e sem cabo
de tanto bater na saudade.
Antônio
E
porque hoje é o seu aniversário,
revirei velhas gavetas,
mexi e remexi nas suas coisas,
que continuam existindo depois
de você.
Sua caneta ainda escreve
os recados que não me chegam
mais.
Seu isqueiro ainda acende,
seu chaveiro ainda abre portas
e
seu cheiro ainda está no
paletó
que você brincava de dizer
que era de ver Deus.
No bolso dele foi que eu achei
o lenço que secou meu choro.
Tô com muita saudade, papai.
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