Poesia
no “Mulo” de Darcy
Ribeiro
Wanderlino
Arruda
Não
sei por que mecanismo fica guardado
em nossa memória um assunto
que julgamos de interesse futuro,
e que em determinado momento
nada temos a fazer com ele.
Um dia, sem qualquer planejamento,
aquele assunto aflora em nosso
pensamento e, sem quê
nem porquê, se insinua
como se em nascimento de filho
de parto invisível, produto
de gravidez intelectual como
a apelida Cyro dos Anjos, disso
acometido muitas vezes na vida.
Foi o que aconteceu hoje comigo,
ao desengavetar da lembrança
de três ou quatro anos
a sonoridade de uma poesia rítmica
e bem feita encontrada na prosa
do romance “O Mulo”,
de Darcy Ribeiro, obra que ali
para fazer a apresentação
quando do seu lançamento
em Montes Claros.
E com que alegria volto ao assunto
para compartilhar com o leitor,
principalmente por se tratar
de boa lavra, uma mineração
de ouro nas letras contemporâneas.
Lembro-me da surpresa encontrada
nos olhos do próprio
Darcy, sempre crítico
dos outros e de si mesmo, que,
ao esperar uma série
de dados biográficos
dirigidos A e SOBRE um filho
da terra, encontrou uma análise
lingüística e literária
do seu romance, com busca de
estratos fônicos e semânticos,
de que talvez nem ele mesmo
tivesse consciência clara.
Foi assim que, quando descobri
versos com balanço e
métrica na sua prosa,
versos coerentes e bem encadeados
de uma poesia moderna e límpida,
pequeno não foi o seu
espanto.
O livro “O Mulo”
é todo Montes Claros,
com um elenco de personagens
gostosamente nossas, como nomes
do passado e do presente: Agapito,
Lopinho, Izupero Ferrador, Dio,
Mia, Leonel Filogônio,
Malaquias, Benedito Gomes, Quinzim,
Deba, Pio; Pacopaco, Dominguim,
ao lado de Bidê, Konstantin,
Mauricinha, Ducho, Fininha,
Alfeu, Lauzim.
No “Mulo”, Darcy
é muito ele mesmo também,
deixando aqui e ali em toda
a obra pinceladas de irreverência,
quando indiretamente fala do
próprio câncer
que lhe tomou um pulmão,
de apelidos do seu tempo de
criança e de rapaz, de
definições que
dá para a gente chamada
povo (“só quer
folgar e parir”) e para
cidade (“o que me arrelia,
é estar sozinho. Nas
cidades quando lá fui
e vivi, estive sempre só,
só no meio do povaréu,
como um traste que ninguém
vê, nem quer ver”).
Gratificante, quando ele se
torna lírico: “Ele
sentava na ponta do banco, comendo
no prato com a mão, fazendo
capitão e me escutando”.
Lindo, quando ele fala de Benedito
Gomes: “Chamei o compadre
Benedito./ homem de sabedoria,
/ para ver se descobria/ e me
explicava a causa de tanto urubu
/ Não sabia! Ótimo
quando se vê como o mulo:
“Aquele sim, é
o homem / que eu sou, / inteiro.
Cabal. / Sossegado, Valente
/ Realizado. / Contente. / Isso
tudo, sem saber./ Inocente”.
Veja leitor que beleza de ritmo:
“Nessa casona,/ hoje,
um homem espera a Morte. / Eu.
Nem homem sou. / Sou é
um des-homem, / de punhos atados,
/ de dentes cerrados,/ de pernas
peadas, / aos pés do
Senhor!
Quanta coisa boa! Mas devo respeitar
o espaço, e só
tenho tempo de falar de Emilinha,
uma gostosura de poema e de
figura: “Emilinha não
era desse mundo. / Ou era, demais
da conta. / Safada de nascença.
/ Nela havia o sumo de dez,
/ de cem mulheres/ muito fêmeas.
/ Tanto que extravasava, / sopitava
em cheiros e barbas./ Suspiros
e choros. / Era uma força
viva,/ selvagem como esses bichos
silvestres. / Emilinha me fez
homem/ como jamais fui antes
nem depois./ parecia até
feitiço. / Eu e ela inesgotáveis...
/ Vi por fim,/ me convenci,/
de que Lea me vencia,/ me amofinava./
Era mulher demais para um homem
só./ Eu não podia
com a mulinha!.
Precisa mais, leitor?