De
novo, na Idade Média
Wanderlino
Arruda
Voltando
de Salvador, Wladênia traz-me,
como presente do meu amigo Ângelo
Soares Neto, um bom volume de
jornais da velha Bahia, com o
que eu posso passar a limpo um
mundão de assuntos que
andavam em órbita no meu
desejo de saber. Conhecendo-me
muito, o Ângelo soube pinçar
na imprensa baiana e nordestina
muita coisa do nosso comum interesse,
o que muito me agradou e preencheu
apertados minutos das poucas horas
de estudos diários nunca
relegados na longa vida. Lembrei-me
até dos interessantes dias
da década de cinqüenta,
quando o Haroldo Lívio
e eu nos encontrávamos,
todas as tardes, na Biblioteca
Pública, a ler sôfregos
minutos da hora do café
e, quando, embora ligeiros, aprendíamos
muito, principalmente literatura.
Pois bem, leitor, não posso
desviar-me do tema proposto. O
Ângelo e o Haroldo Lívio
teriam alguma coisa com a Idade
Média, assunto que escolhi
para hoje? Falei neles só
para puxar conversa e até
que deu certo, pois, pensando
bem, eles têm algo de medieval
no jeitão de ser e até
no de agir... E por que Idade
Média? Somos ou não
somos cidadãos do quase
século vinte e um? Vivemos
ou não vivemos o limiar
da nova era, quando o moderninho
entra na ordem-do-dia, quando
a mocidade está querendo
a qualquer custo sacudir a poeira
de tudo que aconteceu? É
o ser e o não ser. Eis
a questão que acabo encontrando
nos jornais do Ângelo: o
mundo está voltando para
a Idade Média. Está!
Quem afirma que o mundo está
assim, voltando como carangueijo,
é o professor Cid Teixeira,
em entrevista ao Jornal da Bahia.
O estado já não
protege o homem e, por isso, estamos
vivendo uma época semifeudal,
quando desaparece praticamente
toda proteção ao
indivíduo. O indivíduo
é que protege a si próprio,
girando modernamente, em torno
de si, substitutos do castelo,
da armadura, do escudo, do fosso...
Muita lei, muito artefato legal,
muita estatística, um universo
de siglas, um planejamento que
planeja às avessas, uma
segurança que em certos
casos produz insegurança...
O indivíduo então
passa a construir o muro alto,
o condomínio fechado, distribui
em torno de si o caco de vidro,
esconde-se atrás da fechadura
eletrônica, contrata vigilância
particular, arma circuitos de
televisão, põe trancas
e mais trancas em portas e janelas,
pouco sai de casa à noite,
nunca mais anda despreocupado.
Rico ou pobre, miserável
total ou classe média,
o indivíduo não
mais confia na proteção
oficial, que parece se demitiu
dessa tarefa.
Ao contrário do que sempre
sonhamos com a modernização
do mundo, da lei de proteção
aos direitos de cada um, do respeito
à privacidade, da liberdade
de ação e de pensamento,
do império do bem e da
segurança, o Estado cria
uma casta de tecnocratas insensíveis,
cujo desejo maior é o de
igualarem-se aos faraós
do Egito. No fundo, diz o professor,
todo tecnocrata gostaria de ser
um sacerdote de Amom, um detentor
da ciência hermética,
ter a decisão do poder
divino. Tendo as chaves dos computadores,
falando a linguagem cifrada do
economês só ao alcance
deles mesmos, refrigerados e acarpetados
nos gabinetes, nas cadeiras de
aviões ou nas suítes
de hotéis de luxo, os tecnocratas
têm conseguido dissolver
até a identidade das pessoas,
criando uma multidão de
vassalos, amorfa e impotente.
Se continuarmos voltando, regredindo
para tempos medievais, perdendo
a cada dia o poder de decisão,
breve seremos escravos e não
apenas meeiros de quem governa
o que temos e o que fazemos. A
tecnocracia transforma-se nos
muros de pedra dos castelos dos
séculos sem luz...