Livro de prefácios e comentários

Wanderlino Arruda

2014


POESIA NO “MULO” DE DARCY RIBEIRO

Não sei por que mecanismo fica guardado em nossa memória um assunto que julgamos de interesse futuro, e que em determinado momento nada temos a fazer com ele. Um dia, sem qualquer planejamento, aquele assunto aflora em nosso pensamento e, sem quê nem porquê, se insinua como se em nascimento de filho de parto invisível, produto de gravidez intelectual como a apelida Cyro dos Anjos, disso acometido muitas vezes na vida. Foi o que aconteceu hoje comigo, ao desengavetar da lembrança de uns quinze anos ou mais a sonoridade de uma poesia rítmica e bem feita encontrada na prosa do romance “O Mulo”, de Darcy Ribeiro, obra que ali para fazer a apresentação quando do seu lançamento em Montes Claros. E com que alegria volto ao assunto para compartilhar com o leitor, principalmente por se tratar de boa lavra, uma mineração de ouro nas letras contemporâneas.

Lembro-me da surpresa encontrada nos olhos do próprio Darcy, sempre crítico dos outros e de si mesmo, que, ao esperar uma série de dados biográficos dirigidos a e sobre um filho da terra, encontrou uma análise linguística e literária do seu romance, com busca de estratos fônicos e semânticos, de que talvez nem ele mesmo tivesse consciência clara. Foi assim que, quando descobri versos com balanço e métrica na sua prosa, versos coerentes e bem encadeados de uma poesia moderna e límpida, pequeno não foi o seu espanto.

O livro “O Mulo” é todo Montes Claros, com um elenco de personagens gostosamente nossas, como nomes do passado e do presente: Agapito, Lopinho, Izupero Ferrador, Dio, Mia, Leonel Filogônio, Malaquias, Benedito Gomes, Quinzim, Deba, Pio; Pacopaco, Dominguim, ao lado de Bidê, Konstantin, Mauricinho, Ducho, Fininha, Alfeu, Lauzim.

No “Mulo”, Darcy é muito ele mesmo também, deixando aqui e ali em toda a obra pinceladas de irreverência, quando indiretamente fala do próprio câncer que lhe tomou um pulmão, de apelidos do seu tempo de criança e de rapaz, de definições que dá para a gente chamada povo (“só quer folgar e parir”) e para cidade (“o que me arrelia, é estar sozinho. Nas cidades quando lá fui e vivi, estive sempre só, só no meio do povaréu, como um traste que ninguém vê, nem quer ver”). Gratificante, quando ele se torna lírico: “Ele sentava na ponta do banco, comendo no prato com a mão, fazendo capitão e me escutando”. Lindo, quando ele fala de Benedito Gomes: “Chamei o compadre Benedito,/ homem de sabedoria, / para ver se descobria/ e me explicava a causa de tanto urubu / Não sabia! Ótimo quando se vê como o mulo, ele mesmo ou Filomeno: “Aquele sim, é o homem / que eu sou, / inteiro. Cabal. / Sossegado, Valente / Realizado. / Contente. / Isso tudo, sem saber./ Inocente”.

Veja leitor que beleza de ritmo: “Nessa casona,/ hoje, um homem espera a Morte. / Eu. Nem homem sou. / Sou é um des-homem, / de punhos atados, / de dentes cerrados,/ de pernas peadas, / aos pés do Senhor!

Quanta coisa boa! Mas devo respeitar o espaço, e só tenho tempo de falar de Emilinha, uma gostosura de poema e de figura: “Emilinha não era desse mundo. / Ou era, demais da conta. / Safada de nascença. / Nela havia o sumo de dez, / de cem mulheres/ muito fêmeas. / Tanto que extravasava, / sopitava em cheiros e babas. / Suspiros e choros. / Era uma força viva,/ selvagem como esses bichos silvestres. / Emilinha me fez homem/ como jamais fui antes nem depois./ parecia até feitiço. / Eu e ela inesgotáveis... / Vi por fim, / me convenci,/ de que ela me vencia,/ me amofinava./ Era mulher demais para um homem só./ Eu não podia com a mulinha!... Precisa mais, leitor?

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