Euclides não morre nunca
O que vale mais do que a terra e do que o homem só pode ser o divino. Abaixo do divino, que é o poder criador, grande mesmo plasticidade cósmica e sua argamassa telúrica. Vale mais do que a transcendental e divina, o homem-poeta. Tão grandes são os poetas, que Benedito Croce sugere que eles não sejam intérpretes do seu tempo ou do seu país, mas ao contrário, os críticos da sua época e da sua terra, sempre discordando dos padrões vigentes e da mentalidade comum. Assim foram Dante Alighieri, Miguel Cervantes, Johan Wolfgang Goeth. Assim foi Euclides da Cunha, um inconformado, um transubstanciador da miserabilidade humana em arte pura, social e literária.
Euclides da Cunha, o grande poeta de OS SERTÕES, nunca se rendeu. Foi homem da terra, homem do humano, homem da luta, um estudioso, um dissecador da vida sertaneja, da força e da fraqueza, geólogo e geógrafo do solo e da alma das pessoas, um genial hipnotizador das letras, bandeirante dos mistérios e do misticismo de Canudos e do espírito medieval de Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha, homem da fauna, da flora, do sertão, do deserto. Euclides, a esperança das chuvas e o desespero das secas, homem da terra bárbara e desumana, o maior inimigo dos soldados e o maior aliado dos jagunços. Euclides, o etnólogo, o sociólogo, o historiador, o viajante comedor de horizontes.
Em OS SERTÕES, a terra é uma análise, uma visão panorâmica da região nordestina, na parte da Bahia mais triste, ponta de funil deitado no desenho feito pelo solo seco de Pernambuco, alagoas e Sergipe, um canudo ressequido do Vasa Barris. Canudo é a terra ignota, a entrada do sertão, o inferno de secura da terra e do homem, o martírio secular da fome e da ignorância. O engelhado de argila escaldante é a mesma marca bíblica que os anos de vida e trabalho sulcaram as faces dos escravos hebreus dos desertos egípcios, o traço eterno do sofrimento purgatorial das existências. E a terra do convulso, do áspero, dos ângulos mais agudos, dos relevos mais agressivos, as arestas mais contundentes: o cascalho, a rocha, o penedo, os cactos, os espinhos, os troncos retorcidos de sede, a dureza, o poeirento. Ali estão os taperas, os paus-a-pique, a palha paupérrima servindo de telhado ou abrigo.
No meio da terra terrível, o homem: o mulato, o jagunço, o vaqueiro. Dentro do homem, na alma e na carne, as superstições, a escravidão, a loucura mística mais enlouquecida pela loucura ascética de Antônio Conselheiro, o beato bronco do sertão.
Não há adjetivos para qualificar a Guerra de Canudos, assim como não há vocábulo para determinar a obra de Euclides da Cunha. Em Euclides não há palavras doces ou períodos domados. Tudo nele entra em ebulição, com altíssima temperatura, tudo fundindo no tremendo calor das emoções violentas, o calor de efervescente tragédia. Só em Euclides o impossível se tornou possível. Canudos não se rendeu. Caiu de pé. OS SERTÕES de Euclides da Cunha não cairá nunca!
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